Vivemos uma DEMOCRACIA de fachada?
Por Desidério Murcho
A democracia é hoje infelizmente vista como inevitável. É o sistema
político que quase ninguém se atreve a pôr em causa, e que ninguém põe
em causa publicamente. Isto é infeliz por duas razões. Em primeiro
lugar, porque limita a nossa imaginação. É quase como se fosse proibido
pensar em alternativas; e se não houver ampla liberdade para pensar em
alternativas, será certo que não iremos descobrir alternativas, ainda
que estejam mesmo debaixo do nosso nariz. Em segundo lugar, como viu J.
S. Mill, porque mesmo que a democracia seja o melhor sistema político,
deixar que se torne um dogma morto e não uma opção viva enfraquece a
democracia. Enfraquece-a porque no dia em que surgir alguém que a
ataque, as pessoas não saberão defendê-la.
Talvez mais inquietante é o modo como se pode importar e impor uma
democracia de fachada, quando a mentalidade permanece avessa à
democracia. Isto ocorre precisamente porque se vê a democracia como
inevitável e portanto impõe-se a democracia nos mais diversos países e
instituições, forçando pessoas sem mentalidade democrática a aceitar
regras democráticas que lhes são alheias. Isto provoca comportamentos
algo esquizofrénicos.
Por exemplo, imagine-se que perante uma assembleia qualquer, alguém
defende uma ideia que considero totalmente inaceitável, e até ofensiva.
Se eu tiver uma mentalidade democrática, considero isso normal na vida
da minha instituição; é a expressão da liberdade de consciência dos meus
pares. Limito-me a dizer que discordo, expondo as minhas razões, e
depois voto contra. Posso perder ou ganhar a votação, mas fico de cara
alegre, porque é assim a democracia. Como explicarei depois, a
democracia põe a nu as nossas limitações epistémicas — e as pessoas sem
mentalidade democrática não suportam isso. Mas o que acontece se a
democracia me tiver sido imposta, nunca a tendo eu interiorizado? Nesse
caso, tudo farei para evitar a própria discussão e até a votação —
mesmo que tenha a garantia de a ganhar. Porque o que não quero é
admitir que há quem pense de maneira assim tão diferente de mim;
não reconheço o seu direito a ter essa opinião, e ainda menos a
exprimi-la, defendê-la e submetê-la à votação. De modo que procuro
manipular tudo e todos para evitar o próprio acto democrático de
discutir e votar certas ideias ou propostas que considero inaceitáveis.
Nesta mentalidade, há uma democracia de fachada; é só da boca para
fora. Quando chega a hora da verdade, rejeita-se a simples defesa
pública de certas ideias consideradas impróprias, e evita-se
cuidadosamente a sua votação, mesmo que tenhamos a garantia de ganhar. O
que não queremos é ver os espíritos dos outros “contaminados” por tão
perigosas ideias. Talvez porque, no fundo, temos medo de não ter razão,
mas custa-nos demasiado a admiti-lo.
É este último aspecto que se relaciona de perto com o fundamento
epistémico da democracia. A democracia é, a um tempo, um dispositivo
epistémico maravilhoso, e a marca mais profunda e inquietante das nossas
limitações epistémicas — inquietante para quem tem falta de humildade
epistémica. É um dispositivo epistémico maravilhoso porque permite a
discussão livre de ideias opostas, por mais inaceitáveis e repugnantes
que sejam. E isso permite-nos descobrir algumas verdades; permite-nos
ter crenças mais provavelmente verdadeiras; na maravilhosa expressão de
J. S. Mill, dá à verdade todas as oportunidades de vir até nós. Partindo
de ideias diferentes, e até opostas, a discussão livre produz muitas
vezes consensos; permite-nos descobrir ideias que, depois de muita
discussão, todos consideramos melhores do que as que tínhamos antes.
O problema é que este resultado feliz nem sempre acontece. Na
verdade, acontece raramente, sobretudo quando quem discute não o faz com
probidade epistémica, entrando num mero jogo de sofismas verbais e
truques de candongueiro. Ora, o segundo tempo da democracia é o da
votação. Depois de um tempo razoável dedicado à discussão livre de
todas, todas, as ideias, vota-se; e quem tiver mais votos ganha.
Ou seja, depois da força da razão, vem a razão da força. Isto pode
parecer brutal, mas nunca ninguém conseguiu inventar outro sistema
melhor. E é brutal — porque muitas vezes ganha quem não tem razão e
perde quem a tem, acabando muitas vezes o tempo por mostrar que os
vencidos tinham afinal razão.
Só que não temos outro modo de proceder que seja defensável. Para ver
porquê imagine-se que estou coberto de razão, mas perco a votação. O
que poderia fazer para evitar isto? Poderia manipular a votação, com a
melhor das intenções, por saber que os outros iriam votar mal. Mas ao
fazer isto estou a arruinar insidiosamente a própria tessitura do
processo democrático de decisão e da sua racionalidade. Pode até ser
verdade que tenho razão, e que tenho boas justificações para mostrar que
tenho razão, acontecendo apenas que os votantes são casmurros e
palermas. Mas ao manipular a votação estarei a contribuir para o seu
término a prazo. Estarei a contribuir para que o processo democrático de
decisão seja abortado — sejam os votantes casmurros ou epistemicamente
virtuosos. Mas, sobretudo, estarei a assumir uma posição de soberba
epistémica que não passa, geralmente, de ilusão. Estarei a dar uma
confiança exagerada à confiança que tenho na minha posição, indo a ponto
de manipular, mentir e destruir o próprio processo democrático de
decisão. E isto é exagerado porque nunca se pode ter assim tanta
certeza. De um modo mais prosaico, por mais certeza que eu tenha de que
Deus existe, por exemplo, nunca posso ter mais certeza disso do que a
certeza de que se me armar em canalha com quem não acredita em Deus,
serei irremediavelmente um canalha.
Na verdade, parece haver uma certa lei psicológica natural que faz
quem teme não ter razão ser mais manipulador e ansioso do que quem está
convicto, sinceramente e na intimidade do seu ser, de ter razão. A
ansiedade é provocada pelo menos parcialmente pela sensação de que acaso
se mostre que não temos razão isso provocaria a necessidade de uma
mudança de atitude, de vida, de perspectiva, que somos demasiado velhos
ou demasiado preguiçosos ou até demasiado vaidosos para considerar
seriamente. Independentemente desta ansiedade, contudo, é verdade que a
democracia põe a nu as nossas limitações epistémicas, como seres
humanos. E muita gente não suporta isso. Seria de esperar de seres
razoáveis que, reunidos para deliberar honestamente, nunca precisassem
de recorrer à votação, conseguindo-se sempre um consenso honesto. Todas
as pessoas, pela força dos argumentos, acabariam por concordar. Contudo,
este paraíso epistémico é uma ilusão, por duas razões.
Em primeiro lugar, porque as pessoas não são sempre epistemicamente
virtuosas: são casmurras, mentirosas, têm interesses inconfessados que
se envergonham de assumir publicamente (quero trabalhar menos, estou-me
nas tintas para a minha instituição, não gosto do que faço) — ou são
falhas de imaginação ou inteligência, têm falta de tempo para reflectir
ou não o querem fazer porque são preguiçosas. Os seres humanos são mesmo
assim, e todos nós somos assim numa ou noutra ocasião. Parafraseando
Alvin Plantinga — que afirma que já se sabe que somos corruptos,
restando apenas saber qual é o preço a que aceitamos corromper-nos — eu
diria que epistemicamente somos todos palermas, restando apenas saber
até onde vai a nossa palermice.
Mas, em segundo lugar, e mais importante, mesmo que os seres humanos
fossem todos perfeitamente virtuosos, epistemicamente, continuaríamos a
não chegar a consensos em muitos casos. Isto é uma função directa da
nossa falibilidade epistémica. Quando o que está em causa é muito
complexo e vago, há muitos factores que poderão ter mais ou menos peso
em função de muitos outros factores também vagos e que também têm mais
ou menos peso. De modo que duas pessoas que concordam com muitas coisas e
que são epistemicamente virtuosas podem ver-se na situação estranha de
ser incapazes de chegar a um consenso num certo aspecto, ficando até
perplexas com isso e incapazes de detectar a fonte última da discórdia.
Isto é inevitável porque não somos agentes epistemicamente perfeitos.
A democracia põe a nu este aspecto desagradável acerca da nossa
estrutura epistémica, fazendo quem sofre de soberba epistémica aceitar
verbalmente a democracia ao mesmo tempo que a rejeita se desconfiar que
esta permitirá a expressão de ideias que considera inaceitáveis ou a
possibilidade de perder votações cuja possibilidade de perda considera
igualmente inaceitável. A democracia mostra que somos falíveis e que a
nossa falibilidade nos obriga a aceitar a razão da força dos números
brutos de votos, quando a força dos argumentos não gera consensos. Isto
poderá parecer brutal, e é. Mas não há alternativa a não ser a canalhice
que descrevi acima: impedir a discussão livre e ponderada, e a votação
de ideias vistas como inaceitáveis.
Ter uma mentalidade democrática é admitir desde o início a nossa
falibilidade. E isto é admitir que mesmo numa discussão epistemicamente
proba poderemos não chegar a consensos, e teremos de usar a força bruta
do voto. Mas o resultado alcançado será bem acolhido, não se procurando
evitá-lo com manobras de bastidores nem manipulações, porque será
encarado como o resultado normal da nossa falibilidade. Mesmo a
casmurrice e falta de honestidade dos outros seres humanos será vista
como pelo menos parcialmente inevitável e consequentemente algo que
teremos de saber integrar no nosso modo democrático de convívio. Nós
mesmos somos por vezes casmurros e ficamos sistematicamente aquém do
ideal de probidade epistémica. A diferença, se não formos completamente
corruptos, é que tentamos honestamente ser epistemicamente probos, e
tentamos honestamente não nos entregarmos a guerras infantis de
bastidores.
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